A QUEDA DOS DEUSES
O fim da trindade
Após o sumiço dos deuses do plano terreno de Tarvallon, uma sombra de desespero envolveu as almas inquietas. Órfãos de divindades, as pessoas se viram perdidas, destituídas de guias superiores, sem mestres a quem servir e desprovidas de sábios divinos para desvendar os intricados enredos da existência, além de sentirem na pele a redução da capacidade do toque das tramas e habilidades comuns que já possuíam antes dos três irmãos, como a capacidade de voar.
Em meio à incerteza que permeava os corações, Mitra, num enigma de seu paradeiro, evaporou-se da vista, deixando dúvidas acerca de sua presença nos planos terrenos. Sua ausência tornou-se uma lacuna, um vazio que ecoava na alma daqueles que o veneravam. Contudo, mesmo na sua ausência, a trindade que outrora governava soberana o plano terreno desfez-se.
Quando o derradeiro deus, Set, escolheu residir no mundo das almas ao lado de Derketo, uma tormenta impetuosa arrebatou os céus. O dia se transformou em noite em uma transição fulminante, lançando uma sombra inquietante sobre os corações perplexos. Diante desse cenário, uma inquietação generalizada se instalou, levando todos a buscar refúgio em seus lares, enquanto suplicavam por proteção divina em suas preces.
Apesar do seu caráter aterrorizante, a escuridão não perdurou. No entanto, seu breve domínio foi o suficiente para desencadear uma série de eventos sob o manto sombrio que se estendeu sobre Tarvallon. A ausência da trindade unificada deixou sua marca, evidenciada de maneira mais impactante por um tremor majestoso que sacudiu o solo. Era como se alguma força profunda, impulsionada por uma ira intensa, emergisse do âmago da terra, clamando sua presença diante da desunião dos deuses em Tarvallon.
O véu que separa o plano terreno do reino dos mortos, ainda que por curto período, viu-se rompido. Nesse breve intervalo, algumas criaturas escaparam, destacando-se entre elas o guardião do submundo. Era como se a presença divina no plano terreno constituísse a fechadura que resguardava este domínio, e este, despreparado para acolher almas de tal magnitude, experimentou uma sobrecarga transcendental. Como resultado, uma fenda momentânea se abriu e, com a mesma rapidez com que surgiu, novamente se cerrara, selando o limite entre os dois mundos.
Tenebroso, a entidade mais temida no pós-vida, erguia-se como o guardião supremo dos portais da morte, encarregado do equilíbrio entre a entrada e saída de almas. Responsável por viabilizar a possível volta dos deuses. Ele não foi criação dos três irmãos, já era existente, Submetia-se à obediência divina em seus domínios etéreos, no entanto, nos planos terrenos, encontrava-se desvinculado de comandos, livre para seguir seus próprios desígnios, salvo na eventual presença de Mitra, que, caso ainda permanecesse naquelas terras, poderia impor limites à sua autonomia, mas sozinho era algo a se questionar.
Embora desfrutasse de certa liberdade nos planos terrenos, Tenebroso via-se limitado em sua força fora de seu domínio natural. Necessitava, portanto, angariar e ampliar seu exército, colhendo almas no presente plano para fortalecer sua essência. Assim, imerso na obscuridade, ele buscava nas almas dos mortais, a substância que o alimentava e lhe conferia renovado vigor.
Ciente de que a liberdade tinha um sabor inebriante, almejava alcançar a magnitude dos três irmãos que um dia caminharam por aquelas terras. Seu desejo era erguer-se em força a ponto de ser inatingível, imune a qualquer controle divino. Agora, as almas eram responsabilidade das deidades que ali residiam, um papel que não mais recaía sobre seus ombros. Em sua busca pela plenitude de poder, ele ansiava por moldar os destinos dos planos terrenos à sua própria imagem, desafiando a ordem estabelecida pelos deuses.
Optando por estabelecer-se no epicentro da fenda recém-aberta, Tenebroso mergulhou na absorção voraz das almas que povoavam Shadar Logoth. Antes a promissora ascensão da vila, destinada a ser a capital de Tarvallon, suas ambições foram cruelmente frustradas com a sua chegada, desencadeando uma devastação que reduziu a promissora localidade a ruínas.
Contudo, de maneira inesperada, testemunhou algo que escapava às suas previsões. Os habitantes, em um ato de surpreendente resistência, tentaram enfrentá-lo, mas Tenebroso, implacável, aniquilou toda a vila. O que restou dessas almas, agora envoltas em uma aura espectral negra e sombria, tornou-se súdito obediente às suas vontades, uma legião de espectros que vivia para executar os comandos de Tenebroso. Assim, Shadar Logoth, um promissor sonho de prosperidade, sucumbiu diante da sombra avassaladora que se instalou em seu meio.
À medida que o tempo avançava, Shadar Logoth transformou-se em um território intocado, uma região rejeitada pelo mundo exterior. O domínio de Tenebroso estendia-se além da mera absorção de almas inferiores, pois ele criava seres corrompidos por onde passava, exercendo sua influência nefasta até sobre criaturas que antes eram puras, incluindo os próprios animais, sua mácula se espalhou por diversos locais em Tarvallon, inclusive em habitantes, mesmo que de forma sutil.
Descansando nos destroços de Shadar Logoth, Tenebroso consolidava suas forças, urdindo nos bastidores uma trama sombria com o objetivo grandioso de tornar-se o senhor supremo do mundo. Enquanto a vila permanecia envolta em mistério e temor, o sinistro planejamento seguia adiante, alimentado pela corrupção que semeava por onde passava. O descanso em Shadar Logoth era, na verdade, um período estratégico para reunir as energias necessárias para a ambiciosa busca pelo domínio absoluto.
Como uma resposta à crescente presença de Tenebroso e à corrupção que se espalhava, os templos tornaram-se centros de atividade fervorosa. A ameaça iminente uniu as pessoas sob um propósito comum, proporcionando-lhes uma razão para lutar contra as trevas que se insinuavam. Nesse ambiente de urgência e necessidade, a construção da Torre Dourada foi acelerada significativamente, tornando-se um bastião de esperança e resistência.
Na esteira dessa empreitada, a Torre Dourada emergiu como um farol de conhecimento e poder. Foi ali que se deu a formação da primeira turma de magos e guardiões, indivíduos dedicados a dominar as artes das tramas e a defender as terras da influência nefasta que emanava de Shadar Logoth. Assim, a reação ao domínio de Tenebroso deu origem a uma coalizão de forças, fortalecida pelo propósito compartilhado de preservar a luz frente à sombra que se alastrava.
À medida que os anos se desenrolavam, Tenebroso permanecia ausente do olhar inferior, mas seus resquícios ainda ecoavam por Tarvallon. Os gikis junto aos habitantes criaram muros em volta de Shadar Logoth, aproveitando o momento silencioso que havia, uma forma de isolar a cidade e ganhar de certa forma, uma proteção. Os sentinelas da Torre Dourada, vigilantes e determinados, elaboraram planos para adentrar Shadar Logoth, ansiosos por descobrir o mistério por trás do desaparecimento e determinar se as terras poderiam, mais uma vez, aspirar à uma quase utopia, o tempo urgia, tinham medo de a amada Tarvallon fosse comandada agora pelo novo deus das trevas.